Piração, Sully-sur-Loire e Eurovelo 6
►Felicidade para mim é estar em sintonia com seus desejos e ter sabedoria suficiente para saber quando é hora de avançar ou quando é hora de parar, não podemos ter tudo. Minha experiência no Meridiano Verde tem sido interessante, desde o idioma, ao conhecimento profundo dos meus limites.
Extremamente irritado ontem nos vinte quilômetros finais, já estafado por causa do calor, com o bagageiro soltando a cada quilômetro, com o alforge batendo a ponto de arrebentar os raios da roda traseira, com um bico de câmara esvaziando lentamente, hoje, resolvi repensar os valores de toda essa situação que vivi. Dia 10-09 foi dia de colocar a casa em ordem, tanto mecanicamente, quanto psicologicamente; perderia um dia a mais aqui em Sully, mas não daria para prosseguir viagem nessa linha de pensamento, vou explicar. Hoje ao acordar, percebi que o meu maior erro ontem foi não assumir escolhas erradas de equipamento feitas por mim. Freud fazia um questionamento curioso: você já notou que às vezes estamos trabalhando para as coisas darem errado e nos enganamos mostrando aos outros e a nós mesmos que estamos fazendo o certo? Você já se deu conta disso? Agora vou longe, por que insistir numa situação que tem tudo para dar errado achando que um dia ela vai virar a seu favor? Vamos lá, primeiro se está dando errado, você tem 100% de participação nisso! Sim, hoje analisando a situação de ontem, aprendi com ela. Por que me agredi tanto? Porque fui covarde e fugi da responsabilidade dos equipamentos que eu escolhi trazer, culpando terceiros, seja o fabricante da câmara de pneu ou o do bagageiro. Então, hoje assumi que o "stress" de ontem foi causado única e exclusivamente por mim. Aceitação do erro! Difícil, não é? Fiquei mais leve a partir do momento que percebi que quando temos a consciência que podemos modificar para melhor as coisas da vida que estão sob o nosso controle, podemos sim ser mais felizes. E as outras fora do controle como o vento, a morte, o amor? Não adianta brigar com elas, não é? O vento muitas vezes será o amigo a seu favor, outras contra; a sua morte um dia virá; o amor aparece quando menos você espera. Dessa forma, responda e assuma tudo aquilo que você controla, aceite o que não está nas suas mãos.
Passado o drama matutino, me coloquei pronto para resolver a situação mecânica, começando por um novo bagageiro. Sim, comprei um novo e tive o prazer de parar ao lado de uma caçamba de metais recicláveis e jogar aquela porcaria que eu escolhi no lixo. Troquei a câmara de ar por uma da marca Michelin, francesa; pensei que um produto de um fabricante francês funcionaria melhor nos ares da França. Voltei ao albergue, reapertei e medi novamente os padrões de presilhas dos alforges para o novo bagageiro, lubrifiquei tudo. Tratei tudo com muito carinho, fazia de coração.
Saí para almoçar, quer dizer, comprar comida no mercado e comer dentro do dormitório. Já bem animado, fui dar uma volta pela cidade, entrei na igreja, conversei com pessoas nas ruas. Fui até o rio Loire, onde tomei um banho. Estava feliz, voltei a ser corpo e alma no mesmo lugar.
Queria pedalar, voltei para o albergue, vi o mapa e vi que a rota Eurovelo 6 possuía um trecho muito perto daqui. Subi na bike, sem alforges, bem levinha. Parece que ela me chamava para um rolé. As marchas trocavam como a Moonlight Sonata, de Bethoven, estava em sintonia com ela. Percorri um trecho de 10 km da Eurovelo 6 em pleno fim de tarde, o sol se punha. O vento contra zumbia nos meus ouvidos para me empurrar, quem diria, para frente. Fui até Saint-Benoît-sur-Loire, havia um monastério lá, achava que deveria agradecer, agradecer por estar aqui, agradecer pela vida, agradecer por abrir meu coração ao amor e por ter um dia tão maravilhoso em Sully-Sur-Loire.
Acima a Abadia de Fleury em Saint-Benoît-sur-Loire, abaixo o castelo de Sully-sur-Loire
Vou amanhã para Bourges onde terei uma recepção oficial. Sou reservado, não sei se estou preparado para recepção com jornalistas e secretaria de turismo de Bourges, ai, ai, ai. Foi Franck que desde o começo desse ano me orientou sobre a rota do Meridiano Verde, sempre torceu por mim. Ele se ofereceu para me acolher em sua casa nos dois dias que passarei em Bourges. Está empolgado com a questão de um brasileiro fazer essa rota, a qual tanto lutam por uma homologação oficial na Europa. Vou fazer meu amigo Franck Mussio feliz, muitas vezes recuamos para sentir o prazer de ver o outro feliz. O outro que sem seu ato, seria menos feliz. Isso também é bom, enaltece o espírito.
Fico por aqui e me despeço de todos para amanhã cumprir a sétima etapa de 85 km da minha jornada rumo a Barcelona. Boa noite!
Comments